terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Mais uma de fim de ano

            O tempo é um negócio engraçado, né? O ano pode demorar um ano para passar, mas quando chega o último mês e a gente olha pra trás, pensa: “menino, o ano passou num pulo”. E nesse meio tempo, que mais parece ter passado em um minuto, muito acontece e muita gente nova entra na sua vida, assim, de uma hora pra outra, e parece que, em dois meses, você já conhece aquela pessoa há anos.
            E em pouco tempo você vai vendo quais são aqueles que ficarão por anos e anos com você, seja fisicamente ou só na memória, ou até mesmo na lista de contatos do Whatsapp, uma boa ferramenta para manter contato com quem está distante. Entrar para uma faculdade é sinônimo de conhecer pessoas novas, fazer amigos novos e se enturmar com eles. Conhecer seus problemas, ajudar e ser ajudado, morrer de raiva e desespero na hora dos trabalhos em equipe, mas também de rir e adquirir conhecimento. E é engraçado como um semestre inteiro parece que vai demorar um século, mas quando se chega ao fim, não passou nem trinta segundos.

Não que os amigos de antes passem a ser esquecidos os espaços deixados preenchidos pelos novos, isso nunca. Mas, ao invés disso, abre-se um espaço novo, onde cabem todos confortavelmente no peito, na memória, e para alguns, nas orações e listas de melhores. Particularmente eu não acredito em “melhor amigo”, não vejo como posso colocar um amigo acima dos outros, nem ao menos criar uma tabela onde alguns ficam em cima e outros embaixo. Ou é amigo ou é colega ou é conhecido, e todos dentro de cada rótulo (porque o ser humano ama rotular tudo), ficam juntos num mesmo lugar. O ano está chegando ao fim, mas as novas amizades apenas começaram, e as antigas ganham mais força ainda. E também, mais um ano está chegando pra ser vivido a cada dia com todos, e a cada momento, mas não como se fosse o último, porque, na verdade, todos os momentos serão sempre os primeiros.

domingo, 20 de novembro de 2016

Ser otimista

Sempre me disseram
Para ser mais otimista
"Mas por que?", pergunto eu
E me respondem que é óbvio
Então como não vejo isso?
Se é tão óbvio assim
Por que ninguém sabe responder?

Se a violência fascina tanto
Até mais que a bondade
Se preferem xingar, bater
Perseguir, expulsar
Se preferem fazer piada
E desmerecer uma causa
A estudar, pesquisar, respeitar
E manter um diálogo
Como posso ser otimista?

Se a cada ano que passa
O ódio entre duas cores
Divide cada vez mais o povo
Se um ato de respeito
Se um ato de bondade
É taxado de "ato de comunista"
E as pessoas não se dispõem
A fazer uma pequena pesquisa
E preferem manter com força
Um discurso cheio de ódio
Como pode haver otimismo?

Desculpem dizer, mas esse novo ano
Vai nascer mais desgraçado
Que a morte do atual

domingo, 6 de novembro de 2016

A chuva cai

A chuva cai barulhenta nas telhas
E minha alma a solidão devora
O que fazer se, aqui nesse quarto
Ela não sente o mesmo de outrora?

As paredes se aproximam cada vez mais
E eu sinto meu fôlego esvaecer
A solidão me come com grandes mordidas
De dentes grandes a me remoer

E enquanto isso a chuva cai forte
Mas a chuva não molha minh'alma
E não lava esse profundo corte

Mas a chuva leva algo meu, oh sim!
Ela leva as lágrimas dos meus olhos
Que formam cachoeiras sem fim

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

As vogais

Imagine uma sociedade onde todas as letras são As e têm os mesmos costumes e são todos iguais, mudando apenas o tamanho entre as crianças e os adultos. Todas estão acostumadas a realizar as mesmas ações todos os dias, a vida segue igual, sem nada de diferente. Mas então um dia aparece uma letra estranha a essa sociedade. Estranha tanto em forma como em comportamento, como a letra E, e passa a caminhar pela cidade. Como reagiriam as letras As?
Decerto as letras iguais se assustariam perante a chegada dessa nova e diferente vogal. Observariam primeiramente de longe os costumes dela e não se atreveriam a interagir, até que uma das instituições da cidade, como igreja ou justiça buscasse o diálogo e apresentasse a essa nova vogal sua política. Percebendo que essa letra tem modos e ideologia diferentes do povo da cidade, e considerados mais primitivos, tais instituições tentariam transformar essa nova letra em um velho A, para que possa se adequar às normas e à vida daquela sociedade.
Ao constatarem que, mesmo com as tentativas de mudança a nova letra não agia como A, por, e não somente por isso, ser uma letra E, as outras letras A procurariam outro modo de transformar aquela vogal. Usariam de fórmulas mais pesadas e que não respeitam aos direitos daquela letra ser como ela é e forçando-a a deixar de ser E. Assim, dobrariam a perna vertical da nova letra e a deitariam, modificando também a orientação do traço vertical do meio, deixando a letra mais parecida com um A o possível: comemorariam a evolução daquela nova letra, e pior, o próprio E (agora A deformado), comemoraria sua mudança e tentaria se encaixar.
Mesmo depois de um tempo fazendo coisas que as letras A faziam, o antigo E continuaria refletindo sua natureza inata: suas características biológicas não deixariam de existir só porque sua aparência foi mudada e, assim sendo, não tardaria até que sua forma e reações voltassem a ser de E. E se algo ruim acontecesse muitos logo apontariam o dedo para ele, para o diferente, pois a culpa está sempre no outro, no novo, naquele que não é dali. A nova letra perderia a confiança das letras A originais e aos poucos seria abandonado, sentindo-se um fracassado, porque quando todos apontam que o erro é você, nada mais se pode fazer. Ele sumiria.
Contanto, se nessa fuga ele encontrasse uma sociedade de letras diferentes entre si, e também dele mesmo (agora um E com traços de A), que em vez de tentar transforma-lo, decidissem acolhe-lo e trocar ideias, ensinar e aprender com ele, quão grande seria a desconfiança e também alegria dele?
Ele ficaria desconfiado pela experiência que teve com a sociedade anterior, a qual tentou força-lo a ser como eles eram e a fazer o que faziam. Isso marcaria negativamente a ideia de sociedade para o E. Mas, se essa nova sociedade de letras diferentes fosse aos poucos conhecendo e integrando essa letra, de forma que aceitasse suas diferenças, a socialização seria agradável e suave, e o E conseguiria se encaixar nela sem nenhum problema, pois além de aprender com os outros, também poderia ensinar, visto que todos os outros se disporiam a ouvir.

Agora olhe ao seu redor: a sociedade em que você se encontra é como a dos As ou como a das vogais diversas? E olhe também para si: você age da primeira ou da segunda forma? Se você impondo seus costumes, crenças, cultura, etc. sua atitude é tão ruim quanto à da primeira sociedade. As pessoas são diferentes e é preciso aceita-las e respeita-las como elas são. Assim como fizeram as vogais O, I e U com a chegada da letra E.

sábado, 10 de setembro de 2016

Seguindo luzes

                Hoje eu acordei de um dos sonhos mais estranhos que eu já tive em toda a minha vida. Foi tão estranho que ainda estou um pouco confuso, pois há alguns dias, meu professor de Filosofia leu com a gente um texto do livro “O Mundo de Sofia”, que contém basicamente o meu sonho, mas como um exercício de reflexão. Contarei aqui este sonho, mas antes preciso tomar um café. Minha cabeça parece que foi revirada, assim como meus olhos e ainda sinto sono. Pronto, esse café vai me ajudar, agora posso contar a quem quer que leia o meu mais estranho e fantástico sonho.
                No começo tudo estava escuro e eu me levantei da cama, fiquei sentado. Então me perguntei “o que eu faço acordado a essa hora da noite?” e o meu abajur acendeu sozinho. Meu coração comeu a palpitar mais forte, certo medo me surgia e, ao mesmo tempo, senti uma excitação, uma sensação de espanto bom, como uma criança ao ver um cachorro pela primeira vez. Em vez de me levantar e ir apagar o abajur para voltar a dormir, continuei sentado na minha cama e fiz outro questionamento: “como o abajur acendeu se não há mais ninguém em casa e eu não o acendi?” então, nesse momento, a luz do corredor se acendeu.
                Levantei-me da cama e fui até o corredor ver se havia alguém ali, ainda com medo, mas também com aquela excitação de algo novo, como uma corrente elétrica passando pelo corpo. Segui caminhando até o fim do corredor, onde havia a passagem para o quarto de hóspedes, e um grande espelho me esperava com uma imagem minha refletida. “O que eu estou fazendo ali se nem na frente do espelho estou?” E mais uma luz se acendeu, mas não era nenhuma luz da minha casa, era um tipo diferente de luz, uma que não consegui entender e, por isso, nem vou tentar explicar. Mas era forte e quase me cegou. Quando consegui abrir os olhos, aproximei-me do espelho onde eu estava e vi algo que me deixou extasiado.
                Poderia ter sido um extraterrestre, ou um monstro escuro e frio, mas o que estava no espelho era mesmo uma versão de mim, mas diferente: emitia uma forte luz branca e tinha a cabeça maior, com cabelos brancos e barba. Fiquei admirando a minha própria imagem por alguns minutos, perguntando-me como aquilo era possível, sendo que eu não emitia nenhum tipo de luz, nem tinha barba ou cabelos brancos. “O que está acontecendo? Como aquele posso ser eu?” E quanto mais perguntas eu fazia, mais luzes eram emitidas pelo meu reflexo e dentro de casa mais luzes se acendiam. O meu reflexo abriu os olhos e os fixou em mim e, sem dizer uma palavra, falou em minha cabeça: “se quiser ter as respostas de todas as perguntas, venha até mim, ou, melhor dizendo, visite-se.” E estendeu a mão: “em você poderá encontrar todas as respostas, mas apenas se se atrever a perguntar, apenas se não deixar morrer o dom da fascinação, a sua natureza questionadora”. Com a mão estendida toquei o espelho e me emocionei ao sentir que o atravessava como se fosse gelatina.
Mas justamente nesse momento eu despertei na cama, os olhos cheios de lágrimas. Fiquei triste por ter sido apenas um sonho, gostaria que tivesse sido real. Mas às vezes paro um pouco e penso: será que foi? Ou será que foi apenas fruto dessa minha imaginação fantástica? Não podia ser real, não tem como ser! Se bem que, o que podemos dizer com certeza sobre a realidade? O que é verdade? Como poderíamos distinguir um sonho do que é real, se o sonho pode ser tão real quanto o que chamamos de realidade? Nesse momento eu parei de falar e minha mente se abriu a diversas possibilidades. Sorri.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Experiência filosófica dois

Numa tarde quente de quarta-feira, fui a uma costureira pedir para reduzir uma camisa e, de repente, fui acometido por uma forte dor de cabeça. Mesmo com a cabeça doendo continuei caminhando, até porque ela não morava longe, mas cada passo ficava mais doloroso e a caminhada parecia não ter fim. Cheguei, enfim, à casa dela e fiz meu pedido, voltando para casa logo depois, da mesma forma que cheguei até ali: com a dor forte na cabeça.
            Dias depois dessa terrível experiência, veio-me um pensamento à mente: o tempo, dependendo da forma como nos sentimos, é relativo. Aquela caminhada que, num dia sem dores é curta e agradável, naquele dia pareceu durar anos. E, indo mais além, refleti também como o tempo é relativo dependendo de como o utilizamos: se nos ocupamos de uma atividade que gostamos tudo parece passar num estalar de dedos; porém, se ficamos entediados, o tempo se arrasta como uma preguiça.


terça-feira, 23 de agosto de 2016

Experiência filosófica um

            Há alguns dias, numa noite de poucos ventos, ao fim da aula, eu e uma colega descíamos as muitas escadas da faculdade, fizemos uma reflexão sobre solidão. O meu ônibus fica no caminho contrário do lugar onde ela espera o dela, e já íamos nos despedir, mas como meu ônibus sempre chega alguns minutos depois do dela, decidi ficar um pouco e fazer companhia enquanto o dela não chegava.
            Nisso ela me perguntou se eu não ia para o lugar onde o bus para, e eu falei que não, porque sempre fico sozinho até a hora de ele chegar e ela ficou surpresa: “tu fica sozinho lá esperando?” ao que eu respondi que não, fica sempre um bocado de gente, mas como eu não conheço aquelas pessoas é mesmo que estar sozinho. E foi aí, nesse momento, que começamos a refletir.
            Caramba, mesmo a gente estando cercado de pessoas, ainda se sente só se não encontrar nenhum vínculo ou ligação com elas. E, ao mesmo tempo, a companhia de uma pessoa com quem podemos trocar ideias vale mais que todas aquelas ilhas de pessoas com quem não temos nenhuma afinidade. E paramos por um momento para pensar naquilo, e até hoje eu ainda penso.

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Me afogo

Quando bate a saudade
E ela não tá por aqui
Fecho os olhos e imagino
Minhas mãos em seus quadris

E sedento daquele suor
Imagino seu pescoço
E peitos e barriga e coxas
E mergulho de boca

E corpo
E mente
Todo nela, dela
Ela

domingo, 8 de maio de 2016

A Flor e o Fuzil

Ei, senhor Fuzil
Não somos o inimigo
E eu sei também, sr
Que você não é o nosso

Sra Pistola, veja bem
Não era pra estarmos frente à frente
Nessa dança do poder
Mas, sim, lado a lado

Eu sei, sr Bomba
O sr só segue suas ordens
Mas somos apenas Flores
Em fase de crescimento

Não somos o inimigo!
Mas temos um em comum, sr Fuzil
O inimigo é um Ventríloquo louco
Ele puxa seus membros com fios
E faz o grito dele sair da sua boca

Não seja mais um Fuzil de madeira
Disparando a Violência encomendada
Emborrachada e embalada
Meu caro sr Fuzil

sábado, 7 de maio de 2016

Uma casca vazia

                Geraldo gosta de sair com os amigos. Quando sai junto com eles, Geraldo se sente vivo. Ele ri, dança, beija, diverte-se, faz piada, canta, toca. O melhor momento do dia é quando todos os seus amigos se reúnem em círculo, tipo aquele pessoal de humanas mesmo, e fica tocando violão, tomando cerveja e conversando sobre a vida, sobre música, sociedade e a natureza. Sobre lutas e história também. Geraldo se sente vivo e completo quando está com seus amigos e melhor ainda com a namorada, com quem tem momentos bem íntimos.
                Mas depois que chega em casa e tira a roupa, toda aquela animação parece léguas e léguas distantes. Geraldo só quer deitar na cama e chorar. Sente fortemente a angústia de não saber ser feliz sozinho, de só se divertir quando outros estão ao seu redor. Sente aquele vazio no peito, um oco tão profundo que chega a doer. Tenta forçar um sorriso, uma tentativa ridícula de tentar ficar bem, de expressar felicidade, mas só sente a angústia. Um leve desespero bate na porta do seu quarto, dizendo que ele consegue superar, que aquilo é uma fase e logo logo ele estará sorrindo de novo. Sim, ele pode até sorrir, mas não será sozinho, ele sabe. Geraldo se sente uma casca vazia, frágil, quando está só.

quinta-feira, 7 de abril de 2016

A garotinha

                Sob o sol das onze horas, uma garotinha de aparentemente oito anos, voltava para casa depois de mais um dia de aula. Vinha com fome, e, quem sabe, imaginando o que teria no almoço. Em uma das casas no lado da sombra, um homem com olhar mal observava a garotinha. Quem sabe o que ele imaginava.
                Ele disse para a menina: “ei, vem aqui jogar comigo”. Ela pensou rápido e, em vez de ir ao encontro do homem estranho correu para casa. Chorando, contou à mãe dela o acontecido. A mãe ligou para o marido e o contou também, e ele ficou enraivado e correu do trabalho para casa. Chegando lá abraçou a filha e beijou a mulher. Ligou para a irmã e a deixou saber do ocorrido, e pediu que ela contasse à família.
                Depois contou a história a um policial, que no dia seguinte, com a ajuda da menina, encontrou o homem suspeito de chamar a menina para jogar com ele. Ele perguntou e a menina confirmou. Sim, era ele. O policial olhou para o homem e disse “esses são os pais da garota, tem algo a dizer?”. O homem de olhar perverso olhou para a mãe da garotinha e pediu desculpas, alegando não saber que era filha dela, como se isso fosse justificativa.
                O policial perguntou ao pai da menina se ele queria fazer um B.O., mas ele, alegando querer paz, decidiu não fazer. Ao outro homem foi sugerido não se aproximar mais da menina, e ele assim o fez. A família da garotinha voltou para casa, aliviada por nada ter acontecido à filhinha deles.
                Semanas depois, outra garotinha caminhava pela mesma rua e mais uma vez o homem com olhos maldosos estava de olho. Ele chamou, dessa vez com um chocolate na mão, oferecendo à menina. Diferente da outra garota, essa não correu para os pais, mas sim para perto do homem e pegou o chocolate. Ele disse que lá dentro tinha mais e ela entrou, toda sorridente com o chocolate na mão. E a família não viu mais a menina.

                Enquanto isso, a família da garotinha de aparentemente oito anos assistia à tevê, toda reunida, comendo pipoca na sala de estar. 

sábado, 26 de março de 2016

A bola azul

            Toda manhã antes de o sol nascer, Larissa gostava de correr na avenida da cidade onde morava. Ela gostava desse horário porque não tinha quase ninguém e ela conseguia ouvir os pássaros, o vento e os seus pensamentos. Subia até pouco depois da rodoviária, por um lado. Depois, atravessava e descia pelo outro. Era sempre assim. Já sabia até de cor os rostos que encontrava pelo caminho.
            Mas nos últimos três dias ela percebeu que três rostos haviam sumido. Não os via mais nem na subida e nem na descida da corrida. “Talvez eles só tenham viajado”, ela pensou. Mas mesmo assim achou estranho. Um dia depois do sumiço do terceiro rosto, Larissa se levantou cedo para mais uma corrida. Tomou uma vitamina, vestiu a roupa e calçou o tênis. Aqueceu-se e saiu.
            Enquanto corria, Larissa ouviu uma voz ao longe falando seu nome. Arrepiou-se com o tom gélido da voz, mas assumiu que era apenas sua imaginação e continuou correndo. Um pouco mais a frente ouviu passos atrás de si, e, pensando ser alguém, afastou o corpo pro lado pra dar passagem. Mas ninguém passou.
            Larissa sentiu apenas a sensação de um vulto passando do lado dela. Mais uma vez sentiu todo o corpo gelar. Ao lado da passarela, no outro lado da rua, havia lojas com a frente toda em vidro, e, ao olhar para lá, Larissa parou. O que viu do lado de dentro da loja foi, ao mesmo tempo, assustador e chamativo. Por mais que sentisse medo, seu corpo queria entrar ali. Um brilho azulado envolvia toda a loja, e, no lugar onde parecia ser a fonte daquele azul, havia uma bola de vidro.
            Ela se aproximava devagar da entrada da loja. Os pés eram como uma lembrança distante, ela quase não os sentia mais, só sabia que os tinha. Estava em transe. Ouvia uma gaita ao longe, tocando uma canção há muito esquecida por ela. Estirou a mão para tocar a maçaneta da porta, mas não foi preciso. A porta se abriu para ela. A cada passo mais perto da bola, uma sensação de que tudo estava perfeito aumentava dentro dela.
            Ouviu a mesma voz que a chamara momentos antes, quando estava correndo, agora mais perto de si, como um sussurro no ouvido. A voz reclamava da solidão ali dentro. “Eu preciso de novos amigos,” dizia a voz, “me sinto tão sozinha”. Inconscientemente Larissa sorria. Sentiu pena da voz, mas ao mesmo tempo se sentia compreendida. Como se a solidão da voz fosse a dela mesma.
            A voz saía da bola, e agora ela pedia para ser tocada por Larissa. Há tempo não sente o calor das mãos de alguém. Queria de novo o toque de mãos humanas. Larissa, obedecendo ao pedido choroso da voz, colocou suas duas palmas abertas na bola. Uma risada baixa instalou-se no lugar e a porta fechou com um baque. Era o riso de uma criança. Larissa viu suas mãos, aos poucos, virarem cinzas enquanto a bola sugava sua energia.

            De dentro da bola, os olhos tristes de Larissa assistiam seu corpo virar cinzas e ser varrido por um faxineiro tão sem vida quanto à voz que o comandava.