sábado, 19 de dezembro de 2015

Do outro lado do espelho

Parte I

                A primeira vez que entrei no espelho foi confuso. Eu estava caminhando tranquilamente pela minha casa e vi um brilho azulado saindo por baixo da porta do quarto. Era fraco, mas constante, e oscilava entre claro e escuro. Girei a maçaneta devagar e abri a porta, dando de cara com uma forma feminina. Não, não era uma mulher. Era a forma de uma mulher, mas preenchida apenas pela cor azul.
                Porém, assim que me viu, o azul transformou-se num laranja forte, como aquelas luzes de atenção postas onde saem e entram carros com frequência. Não tive tempo de perguntar nada, pois logo ela me viu, correu e entrou no espelho. Sim, amigos. No espelho. Esfreguei os olhos, contei os dedos da mão esperando que aquilo fosse um sonho. Não era.
                Instintivamente corri até a frente do espelho, tentando entender o que acabara de ocorrer ali. O que era aquela forma? O que fazia no meu quarto? Toquei no espelho no qual a forma azul acabara de atravessar e o senti sólido. Era de se esperar. Parece loucura, eu sei. Até hoje não sei explicar, mas aconteceu. Aquilo realmente aconteceu.
                Na noite desse mesmo dia eu tentei esquecer o episódio, mas foi em vão. Na minha mente só passava um filme repetido da Forma Azul correndo em direção ao espelho e atravessando-o. Tentei encontrar diferentes explicações mas nada se sustentava. Não que eu não acreditasse em outros mundos, sempre fui imaginativo. Porém aquilo ultrapassava meus limites. Deitei-me e procurei descansar.
                Eu sonhei com a Forma Azul naquela noite. E a nomeei “Forma Azul” por ter sido a primeira cor que vi nela, e também por azul ser minha cor favorita. Mas, como foi dito, ela também podia assumir outras cores, dependendo, creio eu, do seu estado de espírito. Se é que não era a forma um espírito. No sonho ela me encarava num azul claro, e eu conseguia me ver no seu reflexo límpido, parecia até uma piscina cheia e calma. Eu estava calmo. Ela me tocou e eu senti como se uma corrente elétrica atravessasse meu corpo. Imediatamente senti uma vontade imensa de atravessar o espelho. E, de alguma forma, eu sabia que poderia fazer isso.
                Levantei-me e olhei para minha própria imagem no espelho. O quarto estava totalmente iluminado por um azul encantador que emanava da forma. Não havia olhos, nem orelhas ou ao menos uma boca. Apenas o contorno de um corpo feminino normal. Corri em direção ao espelho e antes de poder atravessar, acordei na minha cama.
                “Foi apenas um sonho”, pensei. Ainda estava escuro e eu me sentei na cama por alguns minutos. Diferente do sonho, não havia nenhuma luz no quarto. Então levantei e acendi a luz do quarto. Parei em pé em frente ao espelho e me encarei. Senti aquela mesma força correr pelo meu corpo, como se eu tivesse certeza que poderia atravessar o espelho. Respirei fundo e dei um passo, depois outro. Decidi que seria melhor não correr.
                Aproximei devagar minha mão do espelho e, para minha surpresa, vi-a sumir dentro dele, como se estivesse colocando a mão numa bacia cheia d’água. Era frio dentro do vidro, e meu corpo foi aos poucos entrando cada vez mais do outro lado dele. Quando minha cabeça estava completamente do outro lado me peguei olhando para o meu próprio quarto, mas ao invés de paredes havia espelhos por todos os lados. Entrei.
                Estava vazio lá dentro, eu esperava ver pelo menos aquela forma de novo. Não havia móveis nem livros, apenas o espaço vazio do quarto emparedado por espelhos. Olhei-me em um dos espelhos, imaginando que cor eu estaria, mas vi apenas meu próprio reflexo. Ouvi passos no corredor ao lado, ao qual uma porta dava acesso, igualzinho na minha casa. Caminhei até a porta e me escondi atrás dela, esperando que fosse a Forma Azul.
                Pelo reflexo vi borboletas azuis invadirem o quarto, mas algo de estranho me chamou a atenção. Era a forma como voavam: pareciam percorrer o mesmo caminho que o sangue percorre o corpo humano. E em algum ponto do tórax elas formavam duas elevações, como se fossem... “Seios! Então é ela!”, pensei, animado ao ver a Forma Azul de novo. E fiquei excitado quando a vi aparecer no meu campo de visão. Sim! Ela mesma. Não o azul que entrou no meu quarto, mas uma mulher. Carne, osso e pele. Saí de trás da porta para ir falar com ela, mas quando me viu gritou e sumiu da minha frente. Logo ouvi mais passos no corredor. Pelo reflexo nos espelhos pude ver vermes ocupando toda forma de um homem e outra forma preenchida por tijolos. Antes que me vissem corri e atravessei de volta o espelho. Estava em casa.