sábado, 26 de março de 2016

A bola azul

            Toda manhã antes de o sol nascer, Larissa gostava de correr na avenida da cidade onde morava. Ela gostava desse horário porque não tinha quase ninguém e ela conseguia ouvir os pássaros, o vento e os seus pensamentos. Subia até pouco depois da rodoviária, por um lado. Depois, atravessava e descia pelo outro. Era sempre assim. Já sabia até de cor os rostos que encontrava pelo caminho.
            Mas nos últimos três dias ela percebeu que três rostos haviam sumido. Não os via mais nem na subida e nem na descida da corrida. “Talvez eles só tenham viajado”, ela pensou. Mas mesmo assim achou estranho. Um dia depois do sumiço do terceiro rosto, Larissa se levantou cedo para mais uma corrida. Tomou uma vitamina, vestiu a roupa e calçou o tênis. Aqueceu-se e saiu.
            Enquanto corria, Larissa ouviu uma voz ao longe falando seu nome. Arrepiou-se com o tom gélido da voz, mas assumiu que era apenas sua imaginação e continuou correndo. Um pouco mais a frente ouviu passos atrás de si, e, pensando ser alguém, afastou o corpo pro lado pra dar passagem. Mas ninguém passou.
            Larissa sentiu apenas a sensação de um vulto passando do lado dela. Mais uma vez sentiu todo o corpo gelar. Ao lado da passarela, no outro lado da rua, havia lojas com a frente toda em vidro, e, ao olhar para lá, Larissa parou. O que viu do lado de dentro da loja foi, ao mesmo tempo, assustador e chamativo. Por mais que sentisse medo, seu corpo queria entrar ali. Um brilho azulado envolvia toda a loja, e, no lugar onde parecia ser a fonte daquele azul, havia uma bola de vidro.
            Ela se aproximava devagar da entrada da loja. Os pés eram como uma lembrança distante, ela quase não os sentia mais, só sabia que os tinha. Estava em transe. Ouvia uma gaita ao longe, tocando uma canção há muito esquecida por ela. Estirou a mão para tocar a maçaneta da porta, mas não foi preciso. A porta se abriu para ela. A cada passo mais perto da bola, uma sensação de que tudo estava perfeito aumentava dentro dela.
            Ouviu a mesma voz que a chamara momentos antes, quando estava correndo, agora mais perto de si, como um sussurro no ouvido. A voz reclamava da solidão ali dentro. “Eu preciso de novos amigos,” dizia a voz, “me sinto tão sozinha”. Inconscientemente Larissa sorria. Sentiu pena da voz, mas ao mesmo tempo se sentia compreendida. Como se a solidão da voz fosse a dela mesma.
            A voz saía da bola, e agora ela pedia para ser tocada por Larissa. Há tempo não sente o calor das mãos de alguém. Queria de novo o toque de mãos humanas. Larissa, obedecendo ao pedido choroso da voz, colocou suas duas palmas abertas na bola. Uma risada baixa instalou-se no lugar e a porta fechou com um baque. Era o riso de uma criança. Larissa viu suas mãos, aos poucos, virarem cinzas enquanto a bola sugava sua energia.

            De dentro da bola, os olhos tristes de Larissa assistiam seu corpo virar cinzas e ser varrido por um faxineiro tão sem vida quanto à voz que o comandava.