quinta-feira, 27 de junho de 2013

O sino da divisão

    
    "Você ainda lembra como era o sinal? Como era quando você era jovem?"
    "Ding... Ding... Ding... Aquele era o sinal. Toda a rua já estava deserta quando o sino começou a badalar. Quase todas as noites os Mascarados tentavam fugir do lado deles pro nosso. E só pararia quando todos estivessem do lado certo da cerca.
    Desde que uma infecção se espalhara numa fábrica da cidade, muitos trabalhadores ficaram presos, cercados na fábrica. Não sabíamos se a doença podia ser adquirida pelo contato, mas também nunca quisemos saber. Não queríamos nos arriscar e acabar como os que estavam do outro lado. O medo começou a tomar conta da população. Toda vez que algum deles tentava ou até mesmo conseguia atravessar a cerca, o sino badalava e todos íamos para nossas casas."
    "Mas... Havia gente que sentia falta dos homens, ou todos ficaram felizes e conformados com aquilo?"
    "Algumas mulheres que ainda amavam seus maridos se arriscavam e tentavam ajudá-los, minha mãe foi uma delas até, mas eram sempre repreendidas pelos outros e pela força policial, que não queriam arriscar. Por mais que gritassem e chorassem que precisavam deles e que os filhos, como eu, também sentiam saudades, ninguém queria os deixar entrar e contaminar seus lares.
    "E esses homens, os Mascarados, todos usavam máscaras no trabalho?"
    "Nem sempre os Mascarados foram chamados assim. Todos trabalhavam sem máscaras, e só depois da doença ter se espalhado e de os policiais encontrarem um homem que trabalhava lá, morto na rua, com marcas escuras no rosto e nas mãos. Quando parecia que a doença estava se espalhando pelo ar, foi aí que eles começaram a usar máscaras. Não sei se foi medida da Prefeitura ou deles mesmos, mas passaram a usar máscaras de gás, o que os tornava assustadores."
    "Um desses homens, você disse, era o seu pai. Como ele morreu?"
    "A luz estava alta e rodava pelos cantos da cidade enquanto o sino continuava tocando, sinal que ainda procuravam homens de máscara pelas ruas. Os policiais usavam luvas e suas fardas eram completamente fechadas, sobrando espaço apenas para os olhos e o nariz. 'Ali um! Comigo!' E foram atrás do homem que usava máscara, e adivinha quem era? Meu pai. Não tiveram nenhuma misericórdia, nem deram chance para que ele mostrasse que não era contagioso. Três disparos: um na perna esquerda, outro na coluna e o último na cabeça. Eu estava na janela, eu vi tudo. Meu pai tinha descoberto que não era contagioso, e eu também sabia disso. Caso contrário não estaria aqui com você, hoje."
    "E agora uma última pergunta: como é estar desse lado? Agora você entende o por quê das máscaras?"
    " Agora eu entendo, sim. E defendo também, tanto que estou aqui com minha máscara, e me sinto do lado certo da cerca. Todos esses homens, como você também está de prova, só precisavam de cuidados, e foi o que eu trouxe. As máscaras simbolizam apenas que eles não querem que os ignorantes, com seu preconceito feio, respirem o mesmo ar que eles. Agora estão todos curados, trouxe remédios, e quando voltei sem nenhuma marca ou sinal de doença, outras mulheres me seguiram. A cerca continua, acho que sempre vai continuar. E vai durar até que o preconceito suma da cabeça daquelas pessoas, como sumiu da minha."






Fonte da imagem: http://pensamentosdiretos.blogspot.com.br/2010/11/o-velho-sino.html 

sábado, 22 de junho de 2013

Abaixo do normal


   Esses tempos são frios, literalmente. Antes de viajar chovia muito, e quando cheguei ao meu destino, também chovia. Houve um momento em que eu não queria deixar o conforto de minha cama, pra enfrentar as horas de viagem sentado num banco de ônibus. Antes eu teria vindo mais feliz.
   Como eu era antes? Antes de tudo isso acontecer, antes de eu ter tido você? Não me lembro o quê ou como eu fazia, nem pra onde costumava ir quando estava aqui. A falta do calor do corpo dela me deixou frio, a distância me esfriou por dentro, deixando nada mais que cinzas dentro de mim. Chuvas, chuvas, queria mais sol, mais calor. Esse calor eu sempre tinha antes, quando eu vinha, feliz, sorrindo. Quando eu ainda a tinha.
   Tenho que me lembrar como eu era antes dela, antes de tudo, antes do começo. Ou isso ou então aprender a ser de novo, ir em outros lugares, andar com os amigos, isso eu fazia antes. Na verdade, preciso conversar com eles, perguntar como estão as coisas, como andam os trabalhos, os estudos, tudo! Não me lembro o que eu costumava ouvir, e nem de quando as músicas de amor não faziam sentido. Agora cada letra traz um pouco de dor, alegria, medo. Aperto!
   Vou tentando reaprender como eu vivia, como eu sorria, como eu saía quando não era com você. De quando eu bebia com os amigos. Vou tentando lembrar de como eu era, e caso não consiga lembrar, posso tentar criar um novo eu.







Fonte da imagem: http://www.humaniversidade.com.br/boletins/depressao_osho.htm

domingo, 2 de junho de 2013

As fases de Amanda: Primeiro encontro


Amanda acordou sorrindo naquela manhã. Estava chovendo lá e ela conseguia ouvir os pingos na janela, que pareciam tentar acordá-la. Por mais que a noite passada tenha sido horrível para ela, a chuva lá fora a fazia se sentir melhor, a ponto até de se olhar no espelho e sorrir para si mesma. Percebeu que ainda estava com seu vestido branco e também que precisava de um banho, então devagar o tirou e se admirou por um tempo. Seus seios eram pequenos, mas bonitos e redondos, cabiam em suas mãos.
Em outro ponto da cidade, um homem com olhos fundos preparava um café e fritava ovos e bacon, teria um dia interessante, ele sabia. Pegou o jornal na porta e depois que o café, amargo como ele gosta, estava pronto, serviu-se, e também dos ovos e bacon, estalando a cada mordida. Na parede de seu quarto havia uma Olympus, ele gostava muito de fotografar. Seu quarto era cheio de fotografias espalhadas, tanto nas paredes quanto pelo chão. Entre muitas delas, havia fotos de uma bela garota, com grandes olhos claros e cabelos castanhos. Na maioria das fotos ela estava em algum banco ou em pé numa parada de ônibus, e em quase todas as fotos ela usava uma saia ou shortinho. Mas nenhuma das fotos parecia ter sido tirada com o consentimento dela.
Depois de uma longa manhã de sexta-feira, Amanda saía da escola em direção à parada, teria reforço pela tarde e não gostava de se atrasar. Usava, como era frequente, saia e uma camisa dos Smiths, além de seus óculos, um pouco grandes para seu rosto. Com medo de perder algum ônibus que fosse para seu bairro - eram apenas dois e demoravam a passar - apressou o passo e quase correu, mas se conteve. Chegando à parada, olhou pro lado que o ônibus chegaria e quando não o viu, sentou no banco para esperar, ali perto, sem ela perceber, um homem tirava uma câmera da bolsa. Amanda sentiu o celular vibrando na bolsa, e o tirou, achando que podia ser sua mãe, mas para sua tristeza era uma mensagem do creepy, que dizia: "Amanda, à sua direita." E assim que ela virou o rosto, um flash a cegou.