quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Penitência

Parte I

  Nos primeiros dias eu atravessei a rua sobre cacos de vidros. Era a primeira das provas que eu teria que passar, caminhar apoiado apenas na instabilidade das minhas pernas, até aprender a ficar de pé sem balançar. Sentia meu sangue escorrer entre os dedos e molhar todo o caminho percorrido de vermelho.
  Mas nada disso poderia ser comparado ao que eu fiz com um coração. O seu. Era apenas o começo da minha expiação, da minha busca pelo perdão não divino, aquele perdão que vale mais a mim que qualquer outro: o perdão de uma mulher. 
  Sob o céu que derramava gotas ferventes tive que continuar caminhando. Quis correr algumas vezes, esconder-me daqueles pingos que caíam quentes sobre mim. Eram delas lágrimas. Os meus pés não sentiam mais os cacos, embora eles ainda estivessem pela estrada. Foi como atravessar as ruas de um Inferno menor. Não aquele descrito por Dante, nem nada parecido. Nesse não havia almas sofrendo por seus pecados, era apenas eu: um único corpo em movimento. 
  De repente uma ventania se abate sobre mim e suas fortes rajadas me tiram sangue. Não vou mais aguentar, penso, mas então levanto meus olhos e enxergo ao longe um brilho intenso e continuo a caminhar. O que sobrou do amor, abaixo de mim, dilacera meus pés, enquanto o sopro de pequenas navalhas faz formar um rio de sangue em meus braços. 
  Pergunto-me por qual razão estou ali, andando na rua, quando nas calçadas estendem-se camas e portas estão abertas, convidando-me a entrar, a deitar. Mas então eu lembro o motivo: "eu prometi a ela. Prometi que seria outra pessoa, que deixaria de lado meu orgulho, o egoísmo, que não agiria por impulso." E ali estava eu, sentindo o antigo impulso me tentando, querendo que eu caísse, que não resistisse. E gritava alto dentro da minha cabeça: "a única maneira de livrar-se de uma tentação é ceder a ela..."
  Senti um pouco de medo; quase caí. Concentrei-me firme no caminho a minha frente. Havia de renunciar aos desejos mundanos caso quisesse realmente continuar minha caminhada, minha transição e um novo ser. Quanto mais eu andava mais o cansaço me pegava, era como se não tivesse fim aquilo. Seria esse o teste que me mostrava que a paciência é uma virtude que ainda devo almejar? 
  Os cacos de vidro agora já não preenchiam todo o caminho. Era um sinal, mas de quê? Para me alertar de que é preciso caminhar com cuidado, mas mais que isso: que preciso tomar cuidado com as atitudes que tomo. Com as palavras que falo e com a estrada que devo seguir. Mais a frente me aparecem três portas, todas da mesma cor. Ouço uma voz que me manda escolher uma porta e que depois de escolher, eu devo entrar e seguir o caminho escolhido sem olhar para trás.
  Escolhi a porta da direita, entrei e a voz não saía da minha mente.

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