segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Último texto do ano


Flor de uísque (ou homenagem a uma barata)

Quando eu era criança, perdi o meu pai. Quando eu era criança, brincava na terra vermelha do jardim de infância. Sujava minha roupa inteira, mas valia a pena, pois comia alguns insetinhos que passavam pelo solo, principalmente baratas.

Agora, já adulto, a terra não me afaga mais o paladar. Quero uísque, mas a garrafa está vazia. A boca, sedenta pelo gosto de carvalho envelhecido, não consegue se controlar. Deseja álcool. Deseja malte. No entanto, como o desejo da parideira estridente de um bode com cabeça de jaca, aquele da boca também não havia de se realizar.

Queria escrever um diário, mas isso é coisa de menininha, disse minha mãe. Vira homem, meu filho! Seja macho, não machucado! Seu pai está morto, mas menino não chora. Você agora é o homem da casa. 

Hoje, ela está lá, entrevada numa cadeira de rodas. E eu estou aqui, entrevado numa privada, enchendo um jarro com meu próprio mijo. Se não tenho uísque, bebo urina. É tão quente e ardida quanto. Ainda mais quando se leva em consideração que a minha garrafa não é da Irlanda, não é da Escócia, nem de qualquer outra terra da rainha sem salvação, embora muitas tivessem sido as súplicas dos Sex Pistols a Deus. Minha garrafa é americana, mas não da América dos escombros de Manhattan, e sim daquela cuja ponte é a alegria dos camelôs tupiniquins.

Na verdade, nada disso. Só agora me dei conta de que essa América é apenas cabine de pedágio do contrabando internacional. O meu uísque deve ter origem na terra dos camponeses de olhos puxados. E, vindo de lá, nem sei mais se minha garrafa era de uísque ou de licor barato. Licor de barata. Só sei que, sendo assim, licor de malte possui o mesmo gosto que licor de barata que possui o mesmo gosto de urina. 

E barata tem realmente gosto de mijo, afinal? Quando comi, era muito pirralho para saber. Não me lembro do sabor. Mas se tem, decerto as baratas são canibais. Pois se vivem no esgoto, se nutrem de mijo, de fezes, de tudo o que é podre e também hão de se comer.

Eu bebo urina. Eu bebo licor de barata. Logo, sou canibal. Logo, sou cria de uma barata. E, se comia baratas na terra do jardim de infância, é porque, logicamente, também sou uma.

Bremmer Augusto Guimarães

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