sábado, 23 de novembro de 2013

Penitência

Parte III

  O céu está fechado. Parece que as nuvens vão cair por cima de todos ali na rua. Todos aqueles que me estão observando com olhares de repulsa, de vergonha. Os pais cobrem os olhos de seus filhos para que não vejam o farrapo de homem que acabou de sair pela porta. Não entendi aquele ato até que olhei para baixo e me vi despido de minhas roupas, de meus pelos e pior que tudo isso: despido de minha dignidade. 
  Algumas mulheres me miravam com olhos de desejo, enquanto outras cobriam a boca, pasmas comigo e com a situação em que me apresento. Ouço gargalhadas também. Essas vêm de um grupo de homens sentados em um círculo na calçada, jogando algum jogo com cartas. Caminho com a minha cabeça ainda erguida, com meus olhos agora postos no que vem adiante, na rua coberta pelos meus pecados. 
  Sangue escorre pelos meus dedos, mas não lembro de ter me ferido ou carregado alguém hemorrágico. Apenas sinto o calor descendo em vermelho e pingando no asfalto, criando um fino caminho por onde eu passo. Não tenho mais nenhum motivo para sentir vaidade. Toda a minha foi perdida, ferida pela minha própria vergonha, pelos erros que cometi, por anos que fiz o que é certo, o que é bom, apenas para que vissem que era eu quem fazia. EU! Todo o orgulho do eu, do pensar somente em sair bem, em ser adorado, tudo isso agora não faz mais sentido para mim. De que vale a hipocrisia? De que vale fazer o bem só para receber admiração e visualização em troca? De que vale se não é feito por afeto, bondade, amor, compaixão? 
  Minha reflexão foi interrompida por um tropeço meu. 
  Caio de joelhos e penso se não seria melhor desistir. Afinal, do que estou mesmo indo atrás? Não tenho certeza nem se ao final de todo esse sofrimento conseguirei de volta o que perdi antes de começar. Ninguém tem certeza do próprio futuro. Ninguém o saberá dizer, nem mostrar. Então por que me faço passar por isso? O que aconteceria se eu simplesmente resolvesse deixar o passado onde ele está, esquecer que o futuro está chegando e me concentrar no presente vivido? Ou não vivido, se tu, leitor, quiseres considerar que eu não vivo o meu presente. Talvez não o viva mesmo.
  Sinto um calor vindo de cima. Não. Não é nenhum deus, caso seja isso que vocês pensaram. É o sol. Um raio que atravessou a densidade das nuvens e agora chega até mim. É a luz do questionamento, da dúvida, da não aceitação do que eu faço comigo mesmo. E ela está abrindo mais espaço entre as nuvens, entre o peso daquele céu que agora não está mais para cair, mas sim, que se afasta.
  Olho ao redor e não encontro mais aquele olhar de vergonha na cara das mulheres, ou o desejo em outras. As crianças não têm mais os olhos cobertos pelas mãos trabalhadoras de seus pais. Eu não estava mais sem roupa ou sem pelos. O sangue não descia mais das minhas mãos e meus olhos sorriam com toda a vida que encontrava a sua frente. 
  Durante tanto tempo eu senti pena de mim mesmo. Todos os dias atribuía uma nova culpa à minha testa, como são atribuídos, no Monte Purgatório de Dante, sete letras 'P' nos pecadores ao iniciarem sua subida em expiação para depois, quando não tiver mais nenhum 'P' escrito na testa, poder enfim entrar no Paraíso. Que me esqueci de viver, de que não vale a pena martelar na cabeça culpas e mais culpas. Isso não faz bem a nenhuma pessoa. 
  Acredito que cheguei ao fim da minha caminhada. O sol agora brilha, os pássaros estão cantando. Vivo feliz, sem mais culpa, sem mais arrependimentos. Enxerguei minha vitória na luz da interrogação.

Nenhum comentário:

Postar um comentário